segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O que se vendia num mercado medieval?

As feiras medievais, recriadas com um maior ou menor grau de fiabilidade e rigor, são um tema cada vez mais popular nas sessões de "história ao vivo". O trabalho de investigação e de preparação logística necessário para este tipo de eventos é tremendo. Em Portugal tem havido algumas recriações de feiras medievais bastante apelativas, como por exemplo a de Óbidos - ainda que aqui se cruzem e se confundam os conceitos de feira e de mercado, que eram diferentes.

Vejamos um mercado. De meados do século XV - por exemplo, da década de 1450. Ainda vivia o Infante D. Henrique, reinava o seu sobrinho D. Afonso V, continuavam os Portugueses a descobrir a costa ocidental africana, o navegador Cadamosto chegava ao arquipélago de Cabo Verde. Em Itália, o movimento cultural que viria a receber o nome de Renascimento estava em franco desenvolvimento... Neste período, o que é que podia ser encontrado e adquirido num mercado? Uma iluminura da época pode dar-nos uma ajuda, se a soubermos interpretar.


Espreitemos esta cena quatrocentista, retirada de uma edição da obra "Livro do Governo dos Príncipes", de Egídio de Roma (c. 1243-1316). À esquerda da imagem encontramos o alfaiate e o seu aprendiz. Há roupas já prontas em exposição, penduradas numa corda. Não se trata de pronto-a-vestir, mas de peças de vestuário já acabadas e à espera de serem levadas por quem encomendou o trabalho. Os clientes levavam ao alfaiate os tecidos (que compravam noutra loja, ao negociante de têxteis), o qual elaborava os trajes pretendidos de acordo com a última moda.

Mais atrás, ao fundo da rua, está a loja dos peleiros. Talvez mais necessários na fria Europa setentrional do que na mais temperada Europa meridional, os peleiros confeccionavam os barretes e os adornos em pele que complementavam os trajes - como pode ser visto num dos homens em primeiro plano, cuja gola e canhões das mangas são em pele. As peles mais comuns eram as de raposa, coelho e gato. A pele de castor também era utilizada para fabricar coberturas para a cabeça. A pele de arminho era muito cara, de modo que só as pessoas mais ricas e importantes a podiam adquirir.

Perto da loja dos peleiros está o barbeiro. Ei-lo a escanhoar um cliente, uma tarefa facilmente reconhecível, pois não mudou muito ao longo dos séculos. Já a moda masculina, no que aos pelos faciais dizia respeito, variou ao longo do século XV. Em meados da centúria era frequente os homens apresentarem-se escanhoados. Esse era trabalho para o barbeiro, que também acumulava outras funções: dentista (ou, mais propriamente, "tiradentes") e sangrador. A sangria era um tratamento recomendado para muitas maleitas, ainda que os resultados fossem duvidosos. As bacias que se vêem na loja do barbeiro destinar-se-iam, provavelmente, a esta última actividade.

Por fim, à direita, vemos um boticário. Apresenta um letreiro que anuncia a venda de "Bom Hipócras", que era um vinho digestivo, preparado com ervas aromáticas e ao qual se adicionava, por vezes, pequenos fragmentos de finíssima folha de ouro (acreditava-se que o ouro ajudava a fazer a digestão). O nome da bebida provém do médico grego Hipócrates, pois utilizava-se uma espécie de filtro de tecido, chamado "manga de Hipócrates", para separar o vinho do sedimento das ervas aromáticas, na fase de preparação da bebida. A sua loja está repleta de recipientes e, sobre o balcão, é possível ver duas bacias. Na verdade, a que está à sua frente servia de cadinho, pois era aí que o boticário, antepassado do actual farmacêutico, preparava a combinação de ervas, especiarias e outros produtos medicinais que o médico receitava ao paciente. A bacia da direita contém pílulas, as quais eram preparadas com uma mistura de várias substâncias reduzidas a pó e amassadas até ficarem com a forma de pequenas bolinhas. À esquerda, em forma de cone, encontra-se o açúcar, produto muito caro nesta época e que entrava na composição de diversos medicamentos.

Como se vê, um pequeno "passeio" por uma iluminura do século XV pode servir de fonte de inspiração para uma recriação histórica.

Bibliografia: MORTIMER, Ian, "Groats in your purse", in BBC History Magazine, vol. 9, nº. 10, October 2008, pgs. 56-59.